domingo, 8 de dezembro de 2019

DISSE-ME-DISSE ou DISSERAM QUE ELES DISSERAM

 

Originalmente publicada na revista digital portuguesa InComunidade
(crônica mensal de setembro de 2019)

Vi outro dia um cartum divulgado no Facebook, no qual uma mulher, na lavanderia, está diante de um cartaz que solicita: “quando acabar a lavagem, por favor retire a roupa. Obrigado. A gerência”. Na imagem, a moça aparece se despindo…

Pode parecer uma simples piada, mas é isso o que muitas vezes acontece quando lemos ao pé da letra frases avulsas, sem lhes buscar o contexto: pinçar só parte de um parágrafo, a esmo, pode deturpar o pensamento do autor, o que está mais próximo de um: alguém-me-disse-que-alguém-disse do que de uma referência séria. Vou citar apenas duas celebridades alemãs que eu amo: um físico e um filólogo (poderia também mencionar dois filósofos – como afirmou Caetano Veloso: “só é possível filosofar em alemão” –, mas não desta vez). Quem encabeça minha lista minimaLista é Einstein: os internautas que endeusam a prática em detrimento da técnica usam um fragmento de um parágrafo, fato que me revira o estômago e me revirará na tumba sempre – quando eu morrer, lógico: “A imaginação é mais importante que o conhecimento”.

Ele disse isso? Disse sim. Porém, a EXPLICAÇÃO desta famigerada referência vem logo a seguir, embora seja abduzida por sites “de pesquisa” do tipo “Pensador”. Ei-la na íntegra: “A imaginação é mais importante que o conhecimento. O conhecimento é limitado. A imaginação envolve o mundo, estimulando o progresso e dando origem à evolução. Ela é, de maneira rigorosa, um fator real na pesquisa científica”.

O público-alvo a que a frase (na íntegra) se direciona é específico: pesquisadores científicos, no caso cientistas rígidos e conservadores, que só “pensavam dentro da caixinha”, na expressão atual. Rodeado por eles, Einstein defende uma ciência na qual a imaginação criativa também faça parte do “experimento” científico. Sua proposta é inclusiva, e não o contrário: ele agrega um elemento a mais à ciência em vez de excluir algo dela; insisto: o recado que ele passa é endereçado aos seus colegas cientistas, lembrando-os de que a teoria é imprescindível, mas, por não ser feita de verdades absolutas, fechadas, eternas (é neste sentido que “o conhecimento é limitado”), a ciência está sempre se renovando, ampliando e evoluindo através de ideias mais atuais que a interpenetram, que a transformam, sendo que muitas intuições e insights foram observados fora das análises laboratoriais.

Mutatis mutandis, o mesmo aconteceu com a “Nova História”, que rompeu com a vertente fundamentada apenas na pesquisa “documental”, para a qual só as fontes importavam: o registro da ocorrência, da data e das circunstâncias contidas nos arquivos consultados. A Nouvelle Histoire (gerada e gestada na década de 1970, no âmago da École des Analles) passou a acrescentar aos documentos factuais a intenção do próprio narrador, que narra o fato do seu ponto de vista. Goff e Noira, entre outros, incluíram a narrativa como um elemento histórico capaz de abrir portas para novos critérios avaliativos e analíticos. Um bom exemplo ilustrativo de que as percepções subjetivas podem incorporar-se ao “enredo histórico” está no cinema: a vida de Yves Saint-Laurent, na versão “consentida” do companheiro e sócio dele Pierre Bergé e assinada por Jalil Lespert é bem diferente da biografia dark, mais sombria, filmada por Bertrand Bonello, e no entanto ambas enfocam a realidade do famoso designer de moda, sob ângulos diferentes. Einstein fez algo parecido no âmbito da ciência. Então, se lermos só uma parte da ideia einsteiniana temos a impressão de que ele prioriza a imaginação, quando ele a privilegia DENTRO DO PROCEDIMENTO CIENTÍFICO TRADICIONAL, o que o torna corajosamente polêmico em meio à quase totalidade de especialistas que não admitiam tal possibilidade. A frase não é um mero achismo pessoal.

A segunda citação é mais terrível ainda: “Deus está morto”. Pobre Nietzsche, outro grande arguidor, que devido agora a esta única frase é tido por seus detratores como um impiedoso monstro destruidor de lares e da fé cristã. Coincidentemente, o contexto no qual este trecho se insere também propõe uma abordagem diferente para a ciência, acrescentando-lhe uma dose de flexibilidade: menos preocupação em provar e comprovar suas verdades absolutas, e mais atenção à humanização, ao visionarismo, mais proximidade com as artes, em especial com a poesia (inclusive, no fim do volume que li, Nietzsche publica poemas seus, no apêndice intitulado “Canções do príncipe livre como um pássaro”). A enfática frase da morte divina consta da obra A Gaia Ciência (1882), e eis a transcrição do momento fatídico, na tradução de Antonio Carlos Braga:

"O INSENSATO (Livro III, § 125)

Para onde foi Deus? É o que vou dizer. Nós o matamos! Vocês e eu! Nós todos, nós somos seus assassinos!

Mas como fizemos isso? Como conseguimos esvaziar o mar? Quem nos deu uma esponja para apagar o horizonte? Que fizemos quando desprendemos essa terra da corrente que a ligava ao sol? Para onde vai agora? Para onde vamos nós? Longe de todos os sóis? Não estamos incessantemente caindo? Para diante, para trás, para o lado, para todos os lados? Haverá ainda um acima e um abaixo? (…) Não ouvimos nada ainda do barulho que fazem os coveiros que enterraram Deus? Não sentimos nada ainda da decomposição divina? Os deuses também se decompõem! Deus morreu! Deus continua morto! E fomos nós que o matamos! Como havemos de nos consolar nós, assassinos entre os assassinos?

“Deus está morto” é tão paradoxal quanto a lucidez deste Louco, ou quanto a do Super-Homem nietzschiano – múltiplo, plural e pluralista, sem identidades fechadas e pré-fabricadas por (re)pressões sociais (para o poeta, as máscaras responsáveis pela ingrata tarefa de coibir e sufocar as potencialidades individuais são as estratégias sociopolíticas de controle, encarregadas de transformar os seres humanas em massas de manobra e em manadas guiadas). É flagrante que o “Deus está morto”, aqui, não significa a negação da existência de Deus, mas sim um impactante ataque aos pilares da nossa civilização ocidental, através de uma prosa poética cuja linguagem é conotativa, associativa, figurada, não podendo ser entendida ao pé da letra, a não ser que achemos realmente, em nossa demência  alucinada, que Deus possa ser enterrado por coveiros ou se decomponha em contato com os vermes da terra, fechado em seu caixão…

No entanto, se quisermos reduzir o conteúdo crítico do questionamento, interpretando stricto sensu esta pseudoafirmação (que no fundo é uma proposta estética provocativa avessista – às avessas), devemos imputar este assassinato a uma religião maniqueísta (formatada por nós humanos), e aos nossos atos diários, esses sim, totalmente insanos (até o personagem do Louco é capaz de reconhecer isso…). Ficar só com a parte do conteúdo para expressarmos a interpretação que nos convém é manipulação. Tenhamos ao menos a coragem de assumir a responsabilidade por esta morte denunciada por Nietzsche: nós, da raça humana, o matamos, assim como na vida real já o fizemos mesmo através do filho d’Ele; então, confessemos… a autoria deste crime, pois daí parte a reflexão sobre os nossos valores e desvarios dionisíacos trágicos (tema também analisado com brilhantismo pelo escritor alemão). Nós O matamos quanto abatemos animais, quando violentamos todos os reinos da natureza e desequilibrando todo o ecossistema do planeta em nome de nossa ganância e da nossa sede de poder;

Resumo da ópera-bufa: a Pragmática (um dos ramos da Linguística que estuda justamente a linguagem no uso na comunicação) nos adverte que “o contexto dentro do qual a comunicação foi efetivada influi na compreensão do enunciado emitido”. Trocando em miúdos, mencionar partes de frases soltas ou parciais de Einstein, de Nietzsche ou de quem quer que seja não nos torna cultos; agindo assim, estaremos apenas repetindo o que alguém disse que alguém disse, imitando caricatamente a fala alheia, tal qual um grandiloquente… papagaio.

Leila Míccolis


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