terça-feira, 22 de junho de 2021

TEXTURAS, CORES E CHAPÉUS

 

Capa do livro Fui eu, org. Eunice Arruda, diversos autores
sobre a pintura de ©Valdir Rocha

Conheci a arte de Valdir Rocha através do livro intitulado Fui eu (título homônimo de uma pintura dele), organizado em 1998 pela queridíssima e grande poetisa Eunice Arruda, em que as diversas ótica dos 41 poetas (inclusive eu) giravam em torno desta tela. Alguns anos depois, o Facebook nos proporcionou um contato direto: a princípio, muito timidamente, perguntei-lhe se me autorizaria que eu ilustrasse uma crônica minha (das que mais gosto) com uma de suas telas ou desenhos. Ele foi de uma extrema gentileza, aceitando meu convite. Para você ver o meu texto, a ilustração dele e outros trabalhos de Valdir clique aqui. Acho que ambas se aproximam, tanto Você viu o Eu-Lírico por aí? como Os Siameses, pois têm em comum o estranhamento diante do fato de aceitar-se uma perspectiva única, considerando-a como verdade absoluta e inquestionável.

Passei a acompanhar a página com as pinturas de Valdir divulgada na Internet: aqueles rostos seriam máscaras? Carrancas? Aquelas posturas estáticas, estátuas? Marionetes?. Podiam ser tudo isso… e muito mais. De qualquer maneira mexiam muito comigo, me emocionavam até quando pareciam ter ar de enfado ou de indiferença profunda. Em 2020, no entanto, o olhar artístico amplo e múltiplo de Valdir revelou-se a mim, quando, por e-mail, ele enviou-me sua peça teatral chamada O Chapéu, e pelos Correios seu belíssimo livro Catarse, no qual menciona en passant seu processo criativo – voltarei a ele ao final desta crônica. Primeiro aproximei-me do livro, mas eram tantas as ideias e as emoções que me surgiam diante daquelas telas que precisei interromper várias vezes minha trajetória até o final; e foi só quando li O Chapéu que entendi uma parte do meu tumulto com Catarse (faz jus ao nome...). A peça teatral é de uma violência imensurável, grotescamente trágica, de um modo quase atordoante; a cada diálogo era como se eu estivesse me aproximando da cratera de um vulcão em erupção, em perigo cada vez mais iminente de ser sugada. De novo voltei a Catarse, e aí sim, “reli-a” com olhos de quem descobre a finíssima interconexão da ação dramática com a pictórica de Valdir: eu podia vê-lo fundindo seus textos em quadros e suas pinturas em narrativas. Uma me levava à outra, inexoravelmente, e nesta conversa quanto as duas tinham/têm a dizer entre si e para o público.

Acho o teatro do absurdo uma das modalidades mais coerentes para entender-se melhor o grau de incoerência a que chegamos na contemporaneidade. Weber já afirmava: “é possível compreender o real a partir do irreal (ou daquilo que é tido como tal”. Porém o final surpreendente e inusitado desta preciosa dramatização traz outros elementos que rompem com o âmbito de uma categorização fechada, principalmente com a mudança abrupta que passa do tom do absurdo absoluto para o de um protesto contra a absorção do ser humano pelo sistema, contra a invisibilidade a que ele acaba se curvando à sua morte simbólica.

O Chapéu de Valdir até hoje não me sai da cabeça – literalmente –, talvez por minha poesia lidar também com um material feito de efeitos de deslocamentos e de irônicos distanciamentos críticos (recursos literários e cênicos também), e de vários outros elementos que eu encontro na arte de Valdir, principalmente agora, tendo seus novos livros em mãos: além da pintura e da escultura, há ainda a reunião de seus trabalhos fotográficos: Olhar e se surpreender (em que o autor escreve na apresentação “Cuidado, portanto, com o olhar do fotógrafo – esse ser espantoso que simplesmente conseguiu um jeito de encarar estranhezas como os ciclopes e a Medusa” – no caso da Medusa, completo eu, a façanha é ele ter conseguido olhá-la sem petrificar-se), e Títeres de Ninguém, outra publicação dele composta de textos e gravuras, da qual extraio esta pérola minimalista, em meio a tantas outras:

Sonhador

¿Todas as coisas têm sexo
ou somente as inanimadas?

Com este duplo sentido delicioso paira no ar a reflexão filosófica: será que o ser humano coisificou-se ou só os objetos que parecem inânimes são realmente energeticamente ativos?…. Esse é Valdir Rocha, pensando, repensando e espelhando sua visão sobre o nosso universo holográfico.

Na introdução do livro O desenho de Valdir Rocha, o autor Péricles Prado cita o neologismo criado pelo pintor: pantemporaneidade, que remete ao prefixo grego “pan”, o todo. Gosto muito da definição de arte de Tulipa Ruiz: “arte é decupar a atemporalidade do agora”. Os gregos aproximavam a poética da physis – a técnica não era isolada da observação atenta ao movimento ininterrupto da vida. Pois Valdir Rocha faz com que este instante eterno retorne sempre renovado através de sua práxis, na qual retrabalha as pinturas originais que lhe serviram de suporte, transpondo o que havia anteriormente para o agora, aliando a simultaneidade do igual ao diferente, dentro de um movimento contínuo e infinito de repetição e mutação. No final da edição de Quintus, o artista coloca lado a lado, em cinco colunas, reproduções do seu trabalho de remontagem e de remodelagem pictóricas dos seus cinco volumes: Sós, em 2010, Confidências (2013), Pós (2015) e Nós (2019), e Quintus, de 2021, oferecendo ao “olhador” – como ele nos chama – a dimensão do que seja o constante exercício vivencial (quase tão hercúleo quanto o de Sísifo em sua ação reiterada e recorrente) não de desconstruir o perene, mas de celebrar, sempre que possível, a grandeza ou a pequenez do transitório.

Por tudo o que – seja nas artes plásticas, na dramaturgia ou na literatura –, o mundo artístico de Valdir Rocha me expande, e para ele eu tiro o meu chapéu…

Leila Míccolis

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