terça-feira, 22 de junho de 2021

VOCÊ VIU O EU-LÍRICO POR AÍ? — Crônica de Leila Míccolis

 

Siameses
Óleo sobre tela, 30 cm. x 40 cm., de  ©Valdir Rocha 

Certa manhã, um dos meus professores de Poética (matéria que eu amava na minha pós-graduação na UFRJ – e continuo amando), entrou na sala e falou muito sério, como se estivesse preocupado: “ – Algum de vocês esbarrou hoje com o Eu-lírico pelos corredores?”. Houve uns segundos de silêncio antes de entendermos que a indagação não passava de um tipo de premissa falsa para nos induzir, ardilosamente, a um silogismo lógico... (“pegadinha” de retórica discursiva...). E a seguir, em uma das lições mais inesquecíveis que tive dentro do contexto da minha área de Teoria Literária, ele nos relembrou que o lírico está ligado a um estado emocional momentâneo, não a um eu no sentido ontológico (em sua dimensão ampla, plena e integral); Se Staiger adjetivou os gêneros literários, em Conceitos Fundamentais da Poética, foi para ampliar o âmbito da taxinomia, acrescentando a ela análises e reflexões filosóficas, que extrapolam o campo da literariedade; hoje, porém, depois que o lírico personificou-se, nos referíssemos a ele como se fosse alguém do nosso convívio...

Gramaticalmente, enquanto pronome (primeira PESSOA do singular), o eu designa um SER racional, e sendo SUJEITO de uma frase, é QUEM pratica ou sofre alguma ação indicada através de um verbo. Em Psicologi

a, o ego também diz respeito a uma pessoa humana: constitui-se de uma das instâncias freudianas da Teoria da Personalidade (o ego, o id e o superego). Porém, um “eu” ficcional é... ficcional, fantasioso, seja em poesia ou em prosa. O vocábulo já indica que se trata de uma construção, ou seja, de uma composição composta (o pleonasmo é proposital) de criatividade, invenção, concepção imaginativa, vasta simbologia, recursos estilísticos (figuras de linguagem como metáforas, hipérboles, metonímias), e outras técnicas que o tornam um artefato, uma peça fabricada/criada/moldada/modelada/burilada/esculpida. Um texto confessional não o é, mesmo que pareça. Ninguém cogita na poesia, por exemplo, que Fernando Pessoa não tomava banho ou era desasseado... No entanto, ele escreve no Poema em Linha Reta, sob o heterônimo de Álvaro de Campos (o meu preferido...): “E eu (...) tantas vezes porco, (...) Eu tantas vezes (...) Indesculpavelmente sujo...” Eis o que o poeta português denomina de Cena Viva, em que há muito de teatralização (uma das marcantes características do Decadentismo) no fazer poético; e em um recuo histórico bem maior, lemos Aristóteles analisando a verossimilhança e a mímese  (imitação não da vida, mas das ações, reações e emoções humanas), nos advertindo de que a poesia não é a realidade em si mesma, mas sim a representação dela.

A escrita literária está intimamente ligada ao conceito junguiano de Persona: gente real, de carne e osso, que se coloca no lugar de um personagem e assume este papel durante a elaboração da obra, cujo conteúdo pode até se apresentar em direção diametralmente oposta à prática de vida diária dos seus autores. “O poeta é um fingidor”, como sabiamente escreveu Pessoa, ciente não só das estratégias e máscaras inerentes à ficção poética, como também consciente de que no “eu”, singular, está embutido (arquetípica e universalmente) o nós, plural. Holisticamente, todos somos um.

Sabendo o que penso a respeito do “eu-lírico”, ao voltar da nossa famosa FLIP – Festa Literária Internacional de Paraty, Flávio Machado, ótimo poeta carioca, escreveu-me sobre as mesas redondas que presenciou no evento: “Leila, lembrei-me muito de você, porque o tal do eu-lírico foi chamado insistentemente por diversos palestrantes nos debates de poesia, mas não subiu ao palco nem uma única vez”... Ri muito com o comentário dele.

Pelos motivos apresentados aqui, toda vez que ouço ou leio sobre o “eu-lírico”, tiro-lhe mentalmente o hífen, e transformo a palavra composta em nome próprio (nada mais justo, já que o eu se refere sempre – para mim – à individualidade de alguém...). Por isso, se você vir o Eulírico – sem hífen – flanando pela rua, por favor, dê-lhe o meu e-mail e peça para que faça contato comigo, urgente, pois gostaria muitíssimo de conhecê-lo, a fim de trocarmos experiências e, quem sabe, tomamos um cafezinho, ou mesmo uma gelada, em comemoração a este nosso memorável encontro.

Leila Míccolis

 

                                  Autor da pintura:

Valdir Rocha
Aquarelista, desenhista, fotógrafo, escultor, gravador e pintor. Nasceu, vive e trabalha em São Paulo.
Eis uma pequena  amosta dos trabalhos de Valdir


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