Siameses
Óleo sobre tela, 30 cm. x 40 cm., de ©Valdir Rocha
Certa
manhã, um dos meus professores de Poética (matéria que eu amava na minha
pós-graduação na UFRJ – e continuo amando), entrou na sala e falou muito sério,
como se estivesse preocupado: “ – Algum de vocês esbarrou hoje com o Eu-lírico
pelos corredores?”. Houve uns segundos de silêncio antes de entendermos que a
indagação não passava de um tipo de premissa falsa para nos induzir,
ardilosamente, a um silogismo lógico... (“pegadinha” de retórica
discursiva...). E a seguir, em uma das lições mais inesquecíveis que tive
dentro do contexto da minha área de Teoria Literária, ele nos relembrou que o
lírico está ligado a um estado emocional momentâneo, não a um eu no sentido
ontológico (em sua dimensão ampla, plena e integral); Se Staiger adjetivou os
gêneros literários, em Conceitos Fundamentais da Poética, foi para ampliar o
âmbito da taxinomia, acrescentando a ela análises e reflexões filosóficas, que
extrapolam o campo da literariedade; hoje, porém, depois que o lírico
personificou-se, nos referíssemos a ele como se fosse alguém do nosso
convívio...
Gramaticalmente, enquanto
pronome (primeira PESSOA do singular), o eu designa um SER racional, e sendo
SUJEITO de uma frase, é QUEM pratica ou sofre alguma ação indicada através de
um verbo. Em Psicologi
a, o ego também diz
respeito a uma pessoa humana: constitui-se de uma das instâncias freudianas da
Teoria da Personalidade (o ego, o id e o superego). Porém, um “eu” ficcional
é... ficcional, fantasioso, seja em poesia ou em prosa. O vocábulo já indica
que se trata de uma construção, ou seja, de uma composição composta (o
pleonasmo é proposital) de criatividade, invenção, concepção imaginativa, vasta
simbologia, recursos estilísticos (figuras de linguagem como metáforas,
hipérboles, metonímias), e outras técnicas que o tornam um artefato, uma peça
fabricada/criada/moldada/modelada/burilada/esculpida. Um texto confessional não
o é, mesmo que pareça. Ninguém cogita na poesia, por exemplo, que Fernando
Pessoa não tomava banho ou era desasseado... No entanto, ele escreve no Poema
em Linha Reta, sob o heterônimo de Álvaro de Campos (o meu preferido...): “E eu (...) tantas vezes porco, (...) Eu
tantas vezes (...) Indesculpavelmente sujo...” Eis o que o poeta português
denomina de Cena Viva, em que há muito de teatralização (uma das marcantes
características do Decadentismo) no fazer poético; e em um recuo histórico bem
maior, lemos Aristóteles analisando a verossimilhança e a mímese (imitação não da vida, mas das ações, reações
e emoções humanas), nos advertindo de que a poesia não é a realidade em si
mesma, mas sim a representação dela.
A escrita literária está
intimamente ligada ao conceito junguiano de Persona: gente real, de carne e
osso, que se coloca no lugar de um personagem e assume este papel durante a
elaboração da obra, cujo conteúdo pode até se apresentar em direção
diametralmente oposta à prática de vida diária dos seus autores. “O poeta é um
fingidor”, como sabiamente escreveu Pessoa, ciente não só das estratégias e
máscaras inerentes à ficção poética, como também consciente de que no “eu”,
singular, está embutido (arquetípica e universalmente) o nós, plural.
Holisticamente, todos somos um.
Sabendo
o que penso a respeito do “eu-lírico”, ao voltar da nossa famosa FLIP – Festa
Literária Internacional de Paraty, Flávio Machado, ótimo poeta carioca,
escreveu-me sobre as mesas redondas que presenciou no evento: “Leila,
lembrei-me muito de você, porque o tal do eu-lírico foi chamado insistentemente
por diversos palestrantes nos debates de poesia, mas não subiu ao palco nem uma
única vez”... Ri muito com o comentário dele.
Pelos motivos
apresentados aqui, toda vez que ouço ou leio sobre o “eu-lírico”, tiro-lhe
mentalmente o hífen, e transformo a palavra composta em nome próprio (nada mais
justo, já que o eu se refere sempre – para mim – à individualidade de
alguém...). Por isso, se você vir o Eulírico – sem hífen – flanando pela rua,
por favor, dê-lhe o meu e-mail e peça para que faça contato comigo, urgente,
pois gostaria muitíssimo de conhecê-lo, a fim de trocarmos experiências e, quem
sabe, tomamos um cafezinho, ou mesmo uma gelada, em comemoração a este nosso
memorável encontro.
Autor da pintura:
Valdir
Rocha
Aquarelista, desenhista, fotógrafo, escultor, gravador e pintor. Nasceu, vive e
trabalha em São Paulo.
Eis uma pequena amosta dos trabalhos de Valdir
Nenhum comentário:
Postar um comentário