sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

EMPREGADA VIRTUAL


Manuela era uma empregada que mamãe não tinha, ou seja, uma abstração. 

 

Sempre que ela queria me chamar atenção por alguma coisa, dizia: – "Vai arrumar o quarto (ou lavar o prato ou qualquer outra coisa no gênero) que a Manuela hoje não veio". Eu já estava acostumada. No entanto, como falava na frente das visitas, algumas não percebiam que se tratava de uma ironia da parte dela. 

 

Um dia, uma de suas amigas lhe falou: – "Essa empregada falta mais do que trabalha, não sei porque você ainda não a despediu". Só então mamãe se deu conta de que a brincadeira estava sendo levada a sério e tratou de desfazer o mal-entendido, contando que Manuela não era real, não existia, era uma piada, hoje falaríamos fake...Quando D. Rosalinda soube que não havia Manuela nenhuma, ficou visivelmente consternada. Eu era criança, mas percebi seus sentimentos pela expressão semelhante a que eu própria tive quando soube que Papai Noel não existia. Na época, se meus coleguinhas diziam que o "bom velhinho" era mentira, eu estufava o peito e argumentava: – "Mamãe disse que ele existe e eu acredito, porque mamãe não mente". Imagine então a surpresa quando encontrei os presentes que eu pedira de Natal no guarda-roupa de meus pais (naquela época, naturalmente, eu ainda não discernia a mentira da fantasia e da ficção; aliás, porque as fronteiras entre este trio às vezes são bem difusas e tênues). 

 

Pois foi a mesma cara de decepção que eu vi estampada no rosto da visitante, abalada com a informação. Na hora não entendi direito o porquê, mas hoje penso que talvez minha mãe fosse a única das amigas de D. Rosalinda a ter uma empregada, ainda por cima uma empregada faltosa, cuja patroa, em sua grande generosidade, a mantinha há anos. Portanto, mexer em Manuela, era também, de certa forma, achar que minha mãe era... digamos insincera, para não taxá-la de mentirosa – isto abalaria a confiança que sentia pela grande amiga.

 

Manuela só ressurgiu das cinzas, na minha vida, quando recebi de uma amiga, uma frase de Wilhelm Stekel (quanto tempo não ouvia falar no discípulo de Freud – eu era sua fervorosa admiradora nos tempos da minha Faculdade de Direito, época em que eu lia mais psicanálise do que obras jurídicas.... Depois mudei para Reich, mas esta é outra história). Escreveu Stekel: "Nem sempre a verdade é fundamental para a nossa felicidade... Existem pessoas que morrem quando seus olhos são abertos!" (O Pato Selvagem, de Ibsen, teatraliza este tema de forma intensamente impactante). 

 

Logo que terminei de ler a frase do psiquiatra austríaco, D. Rosalinda me veio à cabeça, porque não parou a dois parágrafos atrás a história dela com Manuela: foi tão forte para a amiga de minha mãe a ideia da inexistência daquela empregada, a quem provavelmente já imaginara com um corpo, gordo ou magro, e com uma história trágica a lhe justificar tanta falta, que a visitante preferiu pensar que minha mãe mentira sim, porém com a melhor das intenções, a de não "humilhá-la", pois D. Rosalinda jamais poderia pensar em ter uma – professora sempre foi mal remunerada em nosso país... Todos reverenciavam minha mãe por seu caráter ilibado, por ser devotadíssima diretora de escola primária e mestra também em delicadezas (na época dela – pasmem – as pessoas ainda tinham respeito umas pelas outras, achávamos verdadeiramente que "ninguém era melhor do que ninguém" e que bofetadas, só se dava... com luvas de pelica). Provavelmente por isso, a visitante preferiu acreditar nesta versão criada por ela mesma, por ser mais condizente e à altura da admiração nutrida por sua colega de profissão. Foi aí que a expressão facial dela repentinamente desanuviou-se, transformou-se, e, visivelmente, os sentimentos de frustração e de insegurança que sentia deram lugar a um largo sorriso de imensa gratidão.

 

Manuela morreu com mamãe, mas, por tantas e tantas histórias a ela atribuídas, foi a mais forte das personagens fictícias a conviver comigo na infância. Depois de Papai Noel, é claro. 


      Leila Míccolis

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