sexta-feira, 22 de junho de 2012

Jogamos mesmo fora todo lixo que não presta?



Não sou muito adepta de comentar livros lidos, pois o texto sempre acaba parecendo uma resenha, um resumo, simplificado e superficial. No entanto, mesmo correndo este risco, desta vez quero apresentar para quem não conhece uma obra do francês Michel Serres, filósofo, professor de História das Ciências e membro da Academia Francesa. Chama-se: O Mal Limpo – poluir para se apropriar?  Devo a indicação da leitura deste provocativo texto à jornalista Marli Berg, em uma de suas colunas em Blocos Online. Pelo título percebe-se logo de início que o autor trata de diversos mitos modernos e a forma como o faz é direta, provocante, instigante, fascinante.

Serres mostra que todo animal, pela urina, pelo excremento, pelo sangue e pelo esperma –  conforme o caso –  apropria-se de um local, terreno ou território (que pode ser a territorialidade de um país ou de um corpo). Os cães, os javalis e os gatos urinam para marcar sua passagem; as tribos antropófagas, ao devorarem o inimigo, apossavam-se das qualidades dele – só os guerreiros considerados heróis eram merecedores de tal honraria; nos rituais de sacrifício religioso (ainda hoje) e nas guerras (tradicionais), a terra onde o sacrificado ou o inimigo tomba torna-se sagrada para o vencedor, “legitima-o em sua posse”.

Sujar, no sentido de macular, de marcar presença, pertence ao animal –  ao animal que também somos: a sujeira e a limpeza delimitam a propriedade. Por exemplo: em um hotel (ou motel), após a saída de um hóspede, o próximo a se instalar exige roupas de cama limpas, para que possa apropriar-se e imprimir suas marcas, quaisquer que sejam, mesmo que seja apenas um simples amarfanhado nos lençóis; ninguém se enxuga, também, nas toalhas de outro, ou senta-se em vaso sanitário que não tenha o aviso de que foi higienizado. Não que o escritor preconize uma sociedade ascética – o excesso de limpeza é tão nocivo quanto o seu contrário; não, a direção que ele segue é outra – ao final exporei a proposta dele.

Serres tem o cuidado de observar a Modernidade Líquida (outro livro incrível, do sociólogo Zygmunt Bauman), analisando a poluição suave –  ou seja, sutil –  que mal percebemos de tanto que ela já está impregnada em nosso cotidiano: a poluição da marca e da propaganda –  imagem e som –  que atravessa nosso caminho e entra pela nossa casa. É belíssimo quando ele escreve que os outdoors roubam-nos a paisagem e que o barulho de uma televisão ligada apropria-se da convivência/fala entre as pessoas em um determinado local e até da intimidade do silêncio. Os poluidores sujam o mundo para dele se apropriar. Trata-se de uma expansão desterritorializada, globalizada, sem fronteiras, apropriação que nos faz ter um subjetivo tão poluído quanto o coletivo e o objetivo.

O pensador francês diversifica e amplia o conceito de lixo para inúmeras áreas, e em certo momento chega à indústria automobilística, refletindo sobre suas estratégias e ciladas – tantas vezes imperceptíveis, embora “expostas ao olhar de todos”: [tais setores] “dividem com o comprador a propriedade. São ainda mais espertos, eles ficam com ela!”, pois um carro não anuncia o nome nem o estilo de quem “pensou tê-lo comprado; (...) o que ele anuncia é a marca do fabricante. Pagamos às montadoras o que compramos, mas, de certa maneira, elas ficam com o que vendem. Permanecemos apenas locatários. Somos roubados, mas em troca podemos, enfim, compreender a máxima famosa de Prudhon: A propriedade é um roubo’!”.  E o escritor finaliza, ironicamente, acrescentando que, iludidos, ainda fazemos fila para multiplicar, no sentido de apoiar e fomentar, a publicidade da qual somos vítimas.

O que Serres sugere é encontrarmos o que é próprio de uma sociedade (propre também pode ser traduzido do francês como limpo/limpa, e aqui a ambiguidade de sentidos é importante)), a fim de descobrir o que realmente há nela depois que a desvencilhamos de tsunamis de lixos e de dejetos dos mais variados tipos: industriais, tóxicos, culturais, publicitários, identificadores sociais (carteiras, cartões de crédito, talões de cheques), etc. e tal. Neste contexto atual, de invadir o mundo e ocupar sua extensão, corremos o risco de perder o caminho da hominização, já que vivenciamos inclusive o perigo cada vez maior de sermos locatários do planeta, em vez de o habitarmos de forma responsável, consciente e plena. Então, é o retorno a este processo de hominização que o autor propõe, nem que seja apenas estando atentos ao reconhecimento do lixo que acumulamos e da poluição diária que respiramos (e que nos sufoca) de forma ininterrupta, em diversas áreas, para tentar minimizá-los também dentro de nós. Difícil? Muito. Mas não de todo impossível.

Leila Míccolis

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