Amor, então,
também, acaba?
Não, que eu saiba.
O que eu sei
é que se transforma
numa matéria-prima
que a vida se encarrega
de transformar em raiva.
Ou em rima.
Linkagem do meu envolvimento com coisas, animais e pessoas ao imenso frame hipertextual do mundo.
Eu estava nervosa, uma
pilha. Embora ninguém colocasse nestes termos, eu sabia perfeitamente que
aquele seria um teste, não para passar de ano, mas para mudar o curso do rumo
de minha vida, talvez provisório-definitivamente... Pela primeira vez eu ia
escrever para a televisão com créditos na tela. Isto, se fosse aprovada. Óbvio.
Lá fomos nós: eu e meu
medo. Tocamos a campainha, Silvan Paezzo nos atendeu, com olhar sisudo,
convidando a entrar; finalmente, eu estava diante do "monstro
sagrado" da minha juventude. Eu tinha lido todos os seus romances
críticos, violentos, entre fascinada e horrorizada, e, até hoje, amo-os
profundamente. Também foi dele a única novela que acompanhei, antes de escrever
para a TV. Lembro-me de que Juca de Oliveira fazia greve de fome para
sensibilizar a heroína, sua bem-amada, e, depois de conseguir tê-la em seus
braços, com tanto sacrifício, ele morria no último capítulo, vítima de anemia.
Só mesmo um grande autor seria capaz de uma ousada e perigosa reversão de
expectativa desse tipo. Pois era diante dele que eu estava...
Em poucas palavras Silvan
me colocou a par da situação: precisava de uma colaboradora para acabar
"Mania de Querer" (1987), pois, por problemas internos, mais da
metade do elenco tinha saído; precisava então refazer a sinopse, pois a novela
era praticamente outra, precisava mudar até os rumos da trama, devido à
debandada de atores. Perguntou-me se eu tinha experiência em TV e respondi que
só fizera um Caso Verdade, comprado pela Globo, através de Henrique Martins,
mas que o seriado não tinha sido exibido, por causa da censura prévia, o tema
era muito forte (barriga de aluguel) para o horário da tarde. Ele foi durão:
"– Saber que você escreve bem, eu sei, todos sabem; mas, como não li
nenhum roteiro seu, preciso ver seu estilo. Me escreve aí a seguinte cena: uma
mulher bonita está malhando, sozinha na academia, quando entra o ex-namorado,
agarra-a e transa com ela à força". Pensei de imediato: ele tinha
que começar logo com um estupro?...
Lembrei-me, porém, da "Época dos tristes", "Diário de um transviado", "Av. Copacabana 389 apt 801", "Santa Rosinha do Mangue", "Madame Satã" e achei que ele estava sendo coerente, seu pedido fazia sentido. Caprichei então, carreguei nas cores para ser tão realista e forte quanto o "Mestre". Quando acabei, ele leu, franziu o cenho e disse: – "Bom texto, mas muito pesado, principalmente partindo de uma mulher"... Senti uma incômoda sensação de "déjà vu", pois já ouvira muito a variante desta frase com relação a minha poesia. Só que, partindo dele, eu não esperava. Rapidamente levantei-me para ir embora, achando que todas as minhas chances tinham ido por cena abaixo, e lhe respondi, de forma um tanto brusca (pois queria sair dali o mais rápido possível): – "Desculpe, Paezzo, eu não sabia que você queria um estupro leve". Levantei-me já pronta para sair e ele me disse em seu tom seco: – "Senta aí. "Está contratada".
Até hoje não sei se a decisão dele foi motivada pelo que escrevi ou pelo modo com que reagi. Sei que nos entendemos bem. No último dia de trabalho, levei seus livros e pedi que os autografasse. Os exemplares estavam velhos, amarelecidos, com a capa quase despencando, e cheios de anotação. Surpreso, ele folheou-os: "– Esses realmente foram muito lidos". Confirmei: – "Foram. Para mim, você é um dos melhores romancistas deste país". E complementei logo, já que eu sabia que ele não me perguntaria, mesmo que desejasse muito saber a resposta: – "Não lhe falei isto antes, porque eu não queria que minha admiração interferisse na nossa convivência profissional, nem que você pensasse que eu estava te elogiando por puxa-saquismo". Ele emocionou-se. Sei disso porque, pela primeira e única vez, ganhei dele um tímido sorriso. E este, eu tenho certeza, não foi pelo que eu lhe dissera, mas pela capacidade, que sempre tive, de surpreendê-lo.
***
Eu terminara esta crônica
no parágrafo acima, pois nunca mais o vi depois daquele dia e sabia que ele
falecera no ano 2000 – Mania de Querer fora seu último trabalho para a
televisão. No entanto, há alguns anos, o filho dele entrou em contato comigo
(eu o conheci quando ele tinha dois ou três anos de idade), através de uma rede
social e me fez uma grande revelação: – "Meu pai falava que você tinha
sido a melhor parceira de toda a carreira dele; ele tinha enorme admiração por
você". Ao saber disso, pensei: se em vida sempre surpreendi Silvan, agora
ele fizera o mesmo comigo – uma bela reversão
de expectativa, que também me fez sorrir timidamente emocionada.
Leila Míccolis
_____"Ouou" me cai muito bempor causa do meu latido.
Se chegam desconhecidosaí sim, eu solto a voz,porque Leila me ensinou:“Cuidado: gente feroz!”Já perguntaram pra mim,se inspirei uns versos dela
sobre um tal de "Rin Tin Rin".Isso eu não sei (talvez sim),não conheço este carinha,nunca fui apresentado
(será que agita a patinha
quando também pede agrado?).
Sou "Lobo", pra vizinhança,sou "Totó" para as crianças,mas pros íntimos de casa,
não ligo pra nome não:fico prosa e todo em brasaquando a mão deles me afaga,dizendo muda: meu cão.
Leila Míccolis
Cidade grande
é um sofrimento:
o tráfico a mil. O tráfego lento...
Leila Míccolis
Publicada originariamente na Revista Os Urbanitas - Revista de Antropologia Urbana, Ano 2, vol. 1, (ISSN 18060528), SP, 2005
Vem meu veleiro navegar-me lendas
que abro oceanos nunca desbravados,
as portas líquidas dos meus reinados,
e armo de pérolas as nossas tendas...
Vê-me a nudez — afasta as alvas rendas,
que encontrarás tesouros afundados;
só que talvez, pra teres tais agrados,
ao mar pra sempre tua vida prendas.
Se mesmo assim o novo lar não temes,
se não recuas, e se ainda gemes,
por meu amor, sedento de paixão,
cheia de luzes, colorida amante,Leila Míccolis
eu verde, azul, e em brilhos deslumbrantes,
refratarei-me em tuas redes-mãos.
Contestando alguns libelos
que eu sempre julguei daninhos,
desde meus tempos mais idos,
quando havia algum duelo
entre o bandido e o mocinho,
eu era mais o bandido...
Leila Míccolis
Do livro: "MPB - Muita Poesia Brasileira", in Sangue Cenográfico, Blocos, 1997, RJ
VI Encontro Nacional do Mulherio das Letras. Participação especial entre as Mulherageadas: Rui de Habeurim de 18 a 22 de Outubro...