Manuela era uma
empregada que mamãe não tinha, ou seja, uma abstração.
Sempre que ela queria
me chamar atenção por alguma coisa, dizia: – "Vai arrumar o quarto (ou
lavar o prato ou qualquer outra coisa no gênero) que a Manuela hoje não
veio". Eu já estava acostumada. No entanto, como falava na frente das
visitas, algumas não percebiam que se tratava de uma ironia da parte
dela.
Um dia, uma de suas
amigas lhe falou: – "Essa empregada falta mais do que trabalha, não sei
porque você ainda não a despediu". Só então mamãe se deu conta de que a
brincadeira estava sendo levada a sério e tratou de desfazer o mal-entendido,
contando que Manuela não era real, não existia, era uma piada, hoje falaríamos
fake...
Quando D. Rosalinda
soube que não havia Manuela nenhuma, ficou visivelmente consternada. Eu era
criança, mas percebi seus sentimentos pela expressão semelhante a que eu
própria tive quando soube que Papai Noel não existia. Na época, se meus
coleguinhas diziam que o "bom velhinho" era mentira, eu estufava o
peito e argumentava: – "Mamãe disse que ele existe e eu acredito, porque mamãe
não mente". Imagine então a surpresa quando encontrei os presentes que eu
pedira de Natal no guarda-roupa de meus pais (naquela época, naturalmente, eu
ainda não discernia a mentira da fantasia e da ficção; aliás, porque as
fronteiras entre este trio às vezes são bem difusas e tênues).
Pois foi a mesma cara
de decepção que eu vi estampada no rosto da visitante, abalada com a
informação. Na hora não entendi direito o porquê, mas hoje penso que talvez
minha mãe fosse a única das amigas de D. Rosalinda a ter uma empregada, ainda
por cima uma empregada faltosa, cuja patroa, em sua grande generosidade, a
mantinha há anos. Portanto, mexer em Manuela, era também, de certa forma, achar
que minha mãe era... digamos insincera, para não taxá-la de mentirosa – isto
abalaria a confiança que sentia pela grande amiga.
Manuela só ressurgiu
das cinzas, na minha vida, quando recebi de uma amiga, uma frase de Wilhelm
Stekel (quanto tempo não ouvia falar no discípulo de Freud – eu era sua
fervorosa admiradora nos tempos da minha Faculdade de Direito, época em que eu
lia mais psicanálise do que obras jurídicas.... Depois mudei para Reich, mas
esta é outra história). Escreveu Stekel: "Nem sempre a verdade é
fundamental para a nossa felicidade... Existem pessoas que morrem quando seus
olhos são abertos!" (O Pato Selvagem, de Ibsen, teatraliza este tema de
forma intensamente impactante).
Logo que terminei de
ler a frase do psiquiatra austríaco, D. Rosalinda me veio à cabeça, porque não
parou a dois parágrafos atrás a história dela com Manuela: foi tão forte para a
amiga de minha mãe a ideia da inexistência daquela empregada, a quem
provavelmente já imaginara com um corpo, gordo ou magro, e com uma história trágica
a lhe justificar tanta falta, que a visitante preferiu pensar que minha mãe
mentira sim, porém com a melhor das intenções, a de não "humilhá-la",
pois D. Rosalinda jamais poderia pensar em ter uma – professora sempre foi mal
remunerada em nosso país... Todos reverenciavam minha mãe por seu caráter
ilibado, por ser devotadíssima diretora de escola primária e mestra também em
delicadezas (na época dela – pasmem – as pessoas ainda tinham respeito umas
pelas outras, achávamos verdadeiramente que "ninguém era melhor do que
ninguém" e que bofetadas, só se dava... com luvas de pelica).
Provavelmente por isso, a visitante preferiu acreditar nesta versão criada por
ela mesma, por ser mais condizente e à altura da admiração nutrida por sua
colega de profissão. Foi aí que a expressão facial dela repentinamente
desanuviou-se, transformou-se, e, visivelmente, os sentimentos de frustração e
de insegurança que sentia deram lugar a um largo sorriso de imensa gratidão.
Manuela morreu com mamãe, mas, por tantas e tantas histórias a ela atribuídas, foi a mais forte das personagens fictícias a conviver comigo na infância. Depois de Papai Noel, é claro.
Leila Míccolis
2 comentários:
Coisa mais gostosa essa crônica das antigas realidades virtuais!
E entendo a amiga da sua mãe: eu também chego a "ver" a Manuela...rs.
Bjs
Querida, adorei seu comentário, porque, muitas vezes, de tão real, eu também chegava a vê-la sob seu avental invisível... rs.
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