Em
1977, deixei a advocacia para me dedicar a outra “causa” – a literária –, cheia
de Ágape, chama do entusiasmo que até hoje não perdi, porque amo o que faço.
Logo no ano seguinte, em 1978, Wladyr Nader, da então heroica Revista Escrita
(SP), encomendou-me pela sua Editora Vertente, uma antologia com poetisas
"não-alinhadas", ou seja, escritoras que não estivessem satisfeitas
com a situação do mundo nem com a própria condição feminina. Reuni dez
"Mulheres da Vida", título polêmico, próprio para mulheres que
estavam na vida, questionando diversos aspectos individuais e sociais. O
título, severamente criticado por direitistas severos, por esquerdistas
tradicionalistas e até por centristas pseudomoralistas, foi muito bem compreendido
pelo público, que o interpretou corretamente, sem conotações depreciativas, como,
aliás, eu previra mesmo que assim fosse.
Lancei
a antologia no Rio de Janeiro e em várias capitais nordestinas, inclusive
Recife e Natal. Quando cheguei em Fortaleza, nenhuma livraria queria aceitar o
livro. Estávamos ainda sob o tacão da repressão e os livreiros receavam que a
polícia aparecesse e fizesse das suas costumeiras gentilezas: invadisse a loja
selvagemente, batesse nas pessoas, rasgasse obras, revirasse todas as
prateleiras, instalasse o pânico. Ninguém queria correr este risco, de questionar
e/ou desagradar a TFP (Tradição, Família e Propriedade). Para piorar, um
jornalista que ouviu cantar o galo, mas não sabia onde (no caso, não lera o
livro mas queria parecer bem informado), resolveu escrever que "Mulheres
da Vida" era um relato autobiográfico de dez prostitutas. Eitcha! Aí
danou-se tudo, fecharam-se de vez as portas de livrarias, pois todas eram muito
decentes, de boa reputação e de fino trato.
Liguei
para minha amiga Socorro Trindad, em Natal, uma das integrantes do livro (as
outras eram: Norma Bengell, Isabel Câmara, Maria Amélia Mello, eu, Eunice
Arruda, Aninha Franco, Glória Perez. Many Tabachinik e Réca Poletti). Relatei
minha dificuldade, e depois de pensar um pouco ela me sugeriu: "Bom, se
estão falando isto de nós e se as livrarias não aceitam comercializar o livro,
então lance-o num prostíbulo"... Gostei da ideia. Dirigi-me a uma casa que
achei simpática, nas imediações da Praça São Sebastião, e fui muito bem
recebida lá. Maria Loura deu-me todas as facilidades para a realização do meu
projeto, e, alguns dias depois, autografei o livro no Cabaré Estrela do Oriente.
O
que devia ser um lançamento de livro, transformou-se a ser algo diferente,
inusitado, com inimagináveis significados simbólicos – uma espécie de manifesto
cultural, um ato de veemente protesto, chamando a atenção da mídia para o
evento. Resultado: todos os jornais e televisões cobriram a "ousada
manifestação cultural" e nunca tive um lançamento fora do Rio de Janeiro
com tanta gente (inclusive foi lá que conheci Paulo Veras, saudoso parceiro
depois, no livro "Maus Antecedentes"). A intelectualidade em peso
esteve presente, e também inúmeros políticos, que hipocritamente "hipotecaram
sua solidariedade à nobre causa" literária... Vendi tanto livro que os
exemplares que levei não foram suficientes para todos os leitores; acabei vindo
com mais de cento e cinquenta encomendas pagas, mesmo os compradores sabendo
que só receberiam o seu exemplar quase quinze dias depois, quando eu retornasse
ao Rio de Janeiro.
O
mais bonito de tudo, porém, foi a atitude da dona do bordel. Ela estava muito
contente pelas altas personalidades em seu estabelecimento, é claro, mas estava
mais comovida ainda pelo livro em si, por escritoras de nome não terem tido
medo de serem "confundidas com elas". Eu raramente vi alguém pegar um
exemplar com tanta consideração, com tanto respeito. Também raramente vi alguém
ter uma interpretação tão simples e tão adequada de meus poemas. Era uma fase
em que eu, propositadamente, queria chocar os bem-comportados, sacudir-lhes os
ombros, e não media palavrões para agredir os puritanos. Pois ela, sem se
importar com as palavras "de baixo calão" (afinal, costumava ouvi-las
todas às noites justamente dos bem-comportados e dos puritanos), atravessou-as
com a maior naturalidade e se deteve no cerne da mensagem, que elas conheciam
na própria pele: a denúncia da desigualdade de gêneros, o farisaísmo, a
opressão, a repressão.
Maria
Loura estabeleceu as "medidas de exceção" que achou compatíveis com a
ocasião solene: a primeira delas foi a ordem expressa para que nenhuma de suas
meninas trabalhasse naquela noite, o que desmontou a imagem que tinham me dado,
de que elas fossem extremamente interesseiras e mercenárias. Aquelas, se
fossem, teriam aproveitado muito a chance de triplicarem os lucros pela grande
freguesia interessada nelas, já que o programa era insólito na cabeça dos
homens: compre um livro e leve uma menina... Una o útil ao agradável. Porém
todas disseram não. Trabalho, naquela noite, só de garçonetes, servindo as
mesas com bebidas e tira-gostos... Depois, Maria Loura continuou me surpreendendo
quando não aceitou o percentual da venda do livro, combinado anteriormente.
Alegou que o consumo de comes e bebes fora mais do que suficiente, lucrara com
isso e, principalmente, com a propaganda; por fim, no final da noite, ainda se
sentou com suas meninas e varou a madrugada me contando histórias, de alegria,
de dor, de decepção, de esperança, e todas me tocaram profundamente, mudando em
muito a imagem que eu tinha da "profissão mais antiga do mundo"....
Tenho
um carinho especial ao lembrar-me deste lançamento, e o considero como sendo o
melhor que já tive em minha vida.
Ao
pensar em Maria Loura e nas mulheres do Cabaré Estrela do Oriente muitas vezes
me veio à mente a letra de Chico Buarque de Hollanda, "Umas e
Outras", na qual uma freira e uma prostituta cruzam a mesma rua: "Mas toda santa madrugada/ quando uma
já sonhou com Deus/ e a outra, triste namorada,/ coitada, já deitou com os
seus,/ o acaso faz com que essas duas,/ que a sorte sempre separou,/ se cruzem
pela mesma rua/ olhando-se com a mesma dor"... Não se trata de uma
comparação, óbvio, porque nenhuma das escritoras era freira, nem “perdidas”;
mas, sem dúvida a conexão e a analogia aproximativa são visíveis: mesmo com
vidas tão diversas, porém com tantos sentimentos conflitantes em comum provenientes
de uma sociedade patriarcal desigual, manipuladora e autoritária, nos reconhecemos
plenamente naquela noite, naquela mesma rua, olhando-nos (poeticamente) com a
mesma dor e com a mesma com/paixão pelo mundo.
4 comentários:
Ah, Leila querida, tudo tão difícil: a época, os falsos puritanos, os mal entendidos da mídia, a percepção da condição feminina... E, no entanto, que delícia de relato!
Isso é que é fazer limonada com os limões da vida.
Obrigada.
Bjs
Ivana, queridíssima, pois é... a vida é surpreendente às vezes, não? rs... Beijo carinhoso, Leila
Seu texto me deixou arrepiado de emoção. Como a vida é mãe, e não madrasta! E o maravilhoso nisso tudo é que, se os pseudointelectuais e os empresários não entenderam a proposta do livro, Maria Loura soube interpretá-lo delicadamente. Por isso, posso dizer, sem trocadilhos ou depreciações: que puta sensibilidade!
Você tem toda razão, Luiz, é preciso ser uma puta mulher! E ela era. Obrigada por seu comentário que tb me arrepiou.
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