segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

RECUERDOS DO CEARÁ

Capa de Cláudio Morato

Em 1977, deixei a advocacia para me dedicar a outra “causa” – a literária –, cheia de Ágape, chama do entusiasmo que até hoje não perdi, porque amo o que faço. Logo no ano seguinte, em 1978, Wladyr Nader, da então heroica Revista Escrita (SP), encomendou-me pela sua Editora Vertente, uma antologia com poetisas "não-alinhadas", ou seja, escritoras que não estivessem satisfeitas com a situação do mundo nem com a própria condição feminina. Reuni dez "Mulheres da Vida", título polêmico, próprio para mulheres que estavam na vida, questionando diversos aspectos individuais e sociais. O título, severamente criticado por direitistas severos, por esquerdistas tradicionalistas e até por centristas pseudomoralistas, foi muito bem compreendido pelo público, que o interpretou corretamente, sem conotações depreciativas, como, aliás, eu previra mesmo que assim fosse.

Lancei a antologia no Rio de Janeiro e em várias capitais nordestinas, inclusive Recife e Natal. Quando cheguei em Fortaleza, nenhuma livraria queria aceitar o livro. Estávamos ainda sob o tacão da repressão e os livreiros receavam que a polícia aparecesse e fizesse das suas costumeiras gentilezas: invadisse a loja selvagemente, batesse nas pessoas, rasgasse obras, revirasse todas as prateleiras, instalasse o pânico. Ninguém queria correr este risco, de questionar e/ou desagradar a TFP (Tradição, Família e Propriedade). Para piorar, um jornalista que ouviu cantar o galo, mas não sabia onde (no caso, não lera o livro mas queria parecer bem informado), resolveu escrever que "Mulheres da Vida" era um relato autobiográfico de dez prostitutas. Eitcha! Aí danou-se tudo, fecharam-se de vez as portas de livrarias, pois todas eram muito decentes, de boa reputação e de fino trato.

Liguei para minha amiga Socorro Trindad, em Natal, uma das integrantes do livro (as outras eram: Norma Bengell, Isabel Câmara, Maria Amélia Mello, eu, Eunice Arruda, Aninha Franco, Glória Perez. Many Tabachinik e Réca Poletti). Relatei minha dificuldade, e depois de pensar um pouco ela me sugeriu: "Bom, se estão falando isto de nós e se as livrarias não aceitam comercializar o livro, então lance-o num prostíbulo"... Gostei da ideia. Dirigi-me a uma casa que achei simpática, nas imediações da Praça São Sebastião, e fui muito bem recebida lá. Maria Loura deu-me todas as facilidades para a realização do meu projeto, e, alguns dias depois, autografei o livro no Cabaré Estrela do Oriente.

O que devia ser um lançamento de livro, transformou-se a ser algo diferente, inusitado, com inimagináveis significados simbólicos – uma espécie de manifesto cultural, um ato de veemente protesto, chamando a atenção da mídia para o evento. Resultado: todos os jornais e televisões cobriram a "ousada manifestação cultural" e nunca tive um lançamento fora do Rio de Janeiro com tanta gente (inclusive foi lá que conheci Paulo Veras, saudoso parceiro depois, no livro "Maus Antecedentes"). A intelectualidade em peso esteve presente, e também inúmeros políticos, que hipocritamente "hipotecaram sua solidariedade à nobre causa" literária... Vendi tanto livro que os exemplares que levei não foram suficientes para todos os leitores; acabei vindo com mais de cento e cinquenta encomendas pagas, mesmo os compradores sabendo que só receberiam o seu exemplar quase quinze dias depois, quando eu retornasse ao Rio de Janeiro.

O mais bonito de tudo, porém, foi a atitude da dona do bordel. Ela estava muito contente pelas altas personalidades em seu estabelecimento, é claro, mas estava mais comovida ainda pelo livro em si, por escritoras de nome não terem tido medo de serem "confundidas com elas". Eu raramente vi alguém pegar um exemplar com tanta consideração, com tanto respeito. Também raramente vi alguém ter uma interpretação tão simples e tão adequada de meus poemas. Era uma fase em que eu, propositadamente, queria chocar os bem-comportados, sacudir-lhes os ombros, e não media palavrões para agredir os puritanos. Pois ela, sem se importar com as palavras "de baixo calão" (afinal, costumava ouvi-las todas às noites justamente dos bem-comportados e dos puritanos), atravessou-as com a maior naturalidade e se deteve no cerne da mensagem, que elas conheciam na própria pele: a denúncia da desigualdade de gêneros, o farisaísmo, a opressão, a repressão.

Maria Loura estabeleceu as "medidas de exceção" que achou compatíveis com a ocasião solene: a primeira delas foi a ordem expressa para que nenhuma de suas meninas trabalhasse naquela noite, o que desmontou a imagem que tinham me dado, de que elas fossem extremamente interesseiras e mercenárias. Aquelas, se fossem, teriam aproveitado muito a chance de triplicarem os lucros pela grande freguesia interessada nelas, já que o programa era insólito na cabeça dos homens: compre um livro e leve uma menina... Una o útil ao agradável. Porém todas disseram não. Trabalho, naquela noite, só de garçonetes, servindo as mesas com bebidas e tira-gostos... Depois, Maria Loura continuou me surpreendendo quando não aceitou o percentual da venda do livro, combinado anteriormente. Alegou que o consumo de comes e bebes fora mais do que suficiente, lucrara com isso e, principalmente, com a propaganda; por fim, no final da noite, ainda se sentou com suas meninas e varou a madrugada me contando histórias, de alegria, de dor, de decepção, de esperança, e todas me tocaram profundamente, mudando em muito a imagem que eu tinha da "profissão mais antiga do mundo"....

Tenho um carinho especial ao lembrar-me deste lançamento, e o considero como sendo o melhor que já tive em minha vida.

Ao pensar em Maria Loura e nas mulheres do Cabaré Estrela do Oriente muitas vezes me veio à mente a letra de Chico Buarque de Hollanda, "Umas e Outras", na qual uma freira e uma prostituta cruzam a mesma rua: "Mas toda santa madrugada/ quando uma já sonhou com Deus/ e a outra, triste namorada,/ coitada, já deitou com os seus,/ o acaso faz com que essas duas,/ que a sorte sempre separou,/ se cruzem pela mesma rua/ olhando-se com a mesma dor"... Não se trata de uma comparação, óbvio, porque nenhuma das escritoras era freira, nem “perdidas”; mas, sem dúvida a conexão e a analogia aproximativa são visíveis: mesmo com vidas tão diversas, porém com tantos sentimentos conflitantes em comum provenientes de uma sociedade patriarcal desigual, manipuladora e autoritária, nos reconhecemos plenamente naquela noite, naquela mesma rua, olhando-nos (poeticamente) com a mesma dor e com a mesma com/paixão pelo mundo.

                                                  Leila Míccolis

4 comentários:

Ivana Mihanovich disse...

Ah, Leila querida, tudo tão difícil: a época, os falsos puritanos, os mal entendidos da mídia, a percepção da condição feminina... E, no entanto, que delícia de relato!
Isso é que é fazer limonada com os limões da vida.
Obrigada.
Bjs

Leila Miccolis disse...

Ivana, queridíssima, pois é... a vida é surpreendente às vezes, não? rs... Beijo carinhoso, Leila

Luiz Filho de Oliveira disse...

Seu texto me deixou arrepiado de emoção. Como a vida é mãe, e não madrasta! E o maravilhoso nisso tudo é que, se os pseudointelectuais e os empresários não entenderam a proposta do livro, Maria Loura soube interpretá-lo delicadamente. Por isso, posso dizer, sem trocadilhos ou depreciações: que puta sensibilidade!

Leila Miccolis disse...

Você tem toda razão, Luiz, é preciso ser uma puta mulher! E ela era. Obrigada por seu comentário que tb me arrepiou.

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